Venho remexendo em alguns textos, artigos e pesquisas do passado, para organizar o novo site da Brant, que terá um
banco de dados com essas memórias, tão importantes em tempos de urgência como os de hoje. Nessa busca, encontrei uma preciosidade. Um artigo de Gilberto Gil publicado na revista Arquitetura Cultural em 2005, que editei por ocasião do I Fórum de Cultura e Cidadania Corporativa.
Destaco a difereça de postura do ex-ministro com o atual em relação ao investimento privado e a necessidade de promover diálogo com os investidores: “Buscamos corrigir distorções e inovar, avançar. Por isso, a Lei de Incentivo tem sido repensada, sempre com o objetivo de elevar os recursos, ampliar o alcance, democratizar o acesso e facilitar o uso por investidores e produtores culturais, além de elevar o grau de qualidade dos projetos apresentados”.
E talvez deixe-nos uma explicação para a sua saída do MinC: “Muitas pessoas no próprio governo tem dificuldade de compreender o papel da cultura, sua verdadeira dimensão”. Entre as várias funções da cultura apontaas pelo ex-Ministro, ele aponta uma que faz a diferença para gestão atual: “A produção cultural também é uma excelente ferramenta de comunicação e marketing, um amplificador de marcas e produtos, uma forma inteligente de conquistar corações e mentes e uma fonte de imagem limpa, rica e positiva para empresas em busca de construção, consolidação ou renovação de marca.”
Leia o artigo na íntegra:
Por uma nova arquitetura de investimento cultural
Gilberto Moreira Gil*
O processo de formação do Brasil e da sociedade brasileira tem como marca principal a mestiçagem, ou seja, a mistura e a reciclagem permanente de valores, referências, sentimentos, signos e raças. Esta mestiçagem produziu aqui uma cultura tão intensa quanto diversa. E fez das múltiplas expressões culturais do nosso povo o principal fator de diferenciação e de valorização do país no mundo globalizado.
O instrumento básico da mestiçagem brasileira tem sido, desde 1500, a antropofagia cultural, que pode ser definida como o processo pelo qual se absorve, se digere, se transforma e se devolve ao mundo, na forma de novidade, o caldo cultural gerado pela tradição dos que formaram esta sociedade, e pelas influências culturais externas que ela sofreu ao longo dos vários séculos de sua existência.
No vasto e maravilhoso universo real e imaginário da cultura brasileira pulsa uma produção que vai do erudito ao popular, do pré-histórico ao high-tech, do clássico ao inovador. Uma produção que nasce da criatividade do povo brasileiro, que se multiplica em sua miscigenação racial e cultural, que se aprofunda em sua sensibilidade, que se potencializa em sua disposição para superar as adversidades.
Na era da informação, em que o saber e o simbólico tornam-se os principais ativos de uma economia, de um país, de uma empresa e de qualquer organização, grupo ou comunidade, a vitalidade e a diversidade cultural são decisivos. A cultura é um tesouro, um ativo social e econômico em permanente estado de transformação, que não pára no tempo e no espaço, e que se revitaliza no diálogo entre tradição e invenção.
Pode-se dizer que a produção cultural, em todas as suas formas e meios, constitui uma das principais economias do Brasil, que deve ser percebida enquanto tal e aproveitada. O samba do Rio de Janeiro, o Carnaval de Salvador e Recife, a festa de Parintins, na Amazônia, assim como o cinema, o teatro e companhia, constituem economias, cadeias produtivas, de alto valor agregado, elevado dinamismo e grande impacto sobre renda e emprego.
É preciso ver a cultura, portanto, como algo essencial, e não como o vaso de flores que ornamenta os salões do poder ou da elite. Trata-se de um propulsor do desenvolvimento do país. De um fator de diferenciação e de competição. Que merece, portanto, ser encarado como prioridade governamental, como prioridade empresarial e individual, e como canal de diálogo vital entre pessoas e instituições.
Muitas pessoas no próprio governo tem dificuldade de compreender o papel da cultura, sua verdadeira dimensão. Não conseguem encaixar a cultura nos rótulos com que trabalham. Não vêem a cultura como política social, política de infra-estrutura ou política industrial. Esta dificuldade tem uma explicação fácil: é porque a cultura encarna tudo isso, ao mesmo tempo: é social, é econômica, e é prazer também.
Neste mundo ainda marcado por injustiças e desigualdades, está provado também que a cultura qualifica as relações sociais e reduz os focos de tensão e violência, elevando a auto-estima e o sentido de pertencimento do indivíduo. Ela liga as pessoas, estimula as trocas, aproxima, identifica, enfim, valoriza aquilo que o ser humano tem de melhor. Faz com que a gente seja mais e queira sempre ir além, experimentando novas possibilidades.
Mas há ainda outra dimensão da cultura, tão importante quanto as demais. A produção cultural também é uma excelente ferramenta de comunicação e marketing, um amplificador de marcas e produtos, uma forma inteligente de conquistar corações e mentes e uma fonte de imagem limpa, rica e positiva para empresas em busca de construção, consolidação ou renovação de marca.
A arte e a cultura estão presentes com tanta intensidade na vida das pessoas, mesmo das mais pobres, excluídas e esquecidas, que nem sempre são percebidas e valorizadas. Assim como o ar que respiramos. Ou como a eletricidade. Dá para imaginar como seria a nossa vida sem a luz elétrica? No entanto, a percepção de sua importância só acontece quando há um apagão. A falta de luz ilumina sua importância.
Assim é com a cultura. Quando ela está presente em nosso dia-a-dia, quando faz parte de nossa cesta básica, não atentamos para a sua importância. Mas tentem imaginar um mundo sem cultura e arte. Imaginem um tempo sem música, sem leitura, sem cinema, sem dança, sem TV… Imaginem um apagão, um blackout cultural. Como seria a vida sem esta fonte básica de alimentação do espírito e da sensibilidade?
Portanto, quando falamos de cultura, falamos da essência da vida humana. De algo tão vital quanto o ar, quanto a própria natureza. Por isso, é necessário conectar a cultura a todas as dimensões da existência, ao que faz o mundo funcionar, sobretudo à economia e aos negócios. Algo tão fundamental precisa de atenção, de cuidado. Precisa do investimento de todos: governos, empresas, organizações não-governamentais, cidadãos.
No caso das empresas, os investimentos em cultura sempre contribuem, de algum modo, para as suas atividades econômicas. Existem inúmeros casos bem-sucedidos de exercício da cidadania corporativa através da cultura; de como os eventos, os bens e os serviços culturais contribuíram para estimular os negócios de várias empresas brasileiras.
Além das empresas que têm na cultura a sua atividade-fim, e que formam o grupo dos agentes econômicos privados da economia da cultura, nada menos do que 1.721 empresas ligadas a outras áreas da economia investiram em atividades culturais ao longo de 2004 usando os benefícios das leis de incentivo do governo federal. Foram 1.940 projetos patrocinados, com um total de R$ 476 milhões investidos.
Há diversos caminhos, possibilidades e instrumentos para investir e diversos modos de encarar este investimento. O nosso modelo de financiamento público da cultura tem uma década de existência e está entre os mais eficientes e democráticos do planeta. Não por acaso, há vários países criando leis como a Lei de Incentivo à Cultura e a Lei do Audiovisual do Brasil.
Há empresas que recorrem à cultura como exercício de responsabilidade social. Há também as que encaram seus patrocínios como instrumentos de relacionamento ou de divulgação de produtos e serviços. Há quem veja as atividades culturais como oportunidades de negócios, de construção de marca ou de revitalização de suas identidades corporativas. Todas estão certas. A cultura é isso tudo, ao mesmo tempo.
Não por acaso, aliás, procuramos nesses mais de dois anos de gestão aprofundar o diálogo com os usuários do modelo de financiamento e aprender com a prática, entender as motivações de produtores e empresários, e por isso identificamos que há aprimoramentos a serem feitos e oportunidades novas a serem aproveitadas. Por isso, o Ministério da Cultura empreendeu um processo nacional de debate sobre este modelo.
Buscamos corrigir distorções e inovar, avançar. Por isso, a Lei de Incentivo tem sido repensada, sempre com o objetivo de elevar os recursos, ampliar o alcance, democratizar o acesso e facilitar o uso por investidores e produtores culturais, além de elevar o grau de qualidade dos projetos apresentados.
Queremos que mais e mais empresas possam investir na cultura brasileira usando o benefício do incentivo fiscal. E, sobretudo, investir diretamente, com recursos próprios. Queremos que o governo, a iniciativa privada, os produtores culturais e os criadores sejam parceiros nesta feliz aventura de desenvolver a cultura do Brasil e da humanidade, fazendo com que seus frutos sejam acessíveis a todos.
Que as empresas brasileiras aumentem seus investimentos em cultura. Oportunidades não faltam. Nosso cinema, nossa música, nosso teatro e nossas artes visuais estão entre as melhores do planeta. Nossas instituições culturais, como os museus e os centros culturais, realizam trabalhos fundamentais de preservação e difusão. Pode-se investir em capacitação, em reflexão, em produção e em circulação de espetáculos, obras e exposições. As possibilidades estão aí. Aproveitem!
* Gilberto Moreira Gil é Ministro da Cultura do Brasil
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