Experimentamos, atualmente, um verdadeiro fetichismo da “cultura popular”, concebida como reflexo simbólico da identidade comunitária e meio de inclusão social para os que permanecem à margem da sociedade de consumo. De quebra, assistimos também a uma certa demonização da “cultura de elite”, identificada, sem mais, com as práticas de exclusão. Mas o que surpreende é que tais atitudes, apressadamente transformadas em “política cultural”, manifestem-se, simultaneamente, no programa de governo, na pauta midiática, na plataforma universitária e na bandeira de diversas ONGs, sob aplausos entusiásticos dos organismos internacionais de vários tipos. Tanto consenso não deixa de levantar suspeitas…
Há um claro oportunismo político nessa escolha da cultura como válvula de escape para a desigualdade social, especialmente numa situação em que as vias convencionais de inclusão social – habitação, saúde, educação e emprego – estão bloqueadas. Isto é negativo, não só para a cultura, mas para a própria cidadania que se quer promover, além de não alterar nada na estrutura que reproduz aquela situação. Os “socialmente excluídos” são iludidos mais uma vez, com uma espécie de “atalho” que dificilmente os levará de fato àquilo que nunca tiveram: instrução, trabalho e possibilidade de desenvolvimento pessoal. Eles são, além disso, forçados a viver uma segunda vez sua situação de exclusão, encenando-a como espetáculo para uma platéia comovida e bem intencionada. Por outro lado, a própria idéia de “cultura” é amesquinhada com propósitos eleitorais, empresariais ou simplesmente pessoais. Instrumentalizada, ela passa a fazer parte do marketing institucional de governos, empresas e organismos os mais diversos, além de reforçar o curriculum vitae de novos burocratas, futuros candidatos e eternos “líderes comunitários”.
Dessa forma, mesmo que involuntariamente, a idéia de cultura como expressão espontânea da identidade social de um grupo acaba sustentando a apologia do status quo e da homogeneidade. Estimulando os agentes sociais a reiterarem “sua” identidade, como único meio para alcançar o reconhecimento e a aceitação da sociedade, esta política de inclusão os mantém prisioneiros de sua própria cultura e de sua própria situação social. Convoca-os à participação, mas para que permaneçam como estão, ocupados em desempenhar o papel que os outros lhes atribuíram, num espetáculo em que serão eternamente coadjuvantes.
Não se trata de menosprezar as manifestações culturais espontâneas face às formas elaboradas de cultura, mas de reconhecer que as formas espontâneas da cultura popular são importantes exatamente na medida em que são espontâneas e expressam, dessa forma, a vitalidade de uma comunidade. Mas isto quer dizer, também, que tais formas de expressão, apesar de tradicionais, são espontaneamente mutáveis e perdem justamente sua autenticidade quando se tornam objeto de proteção estatal, preservação patrimonial ou simplesmente se transformam em emblemas autorizados da suposta identidade de um grupo.
Se, num sentido antropológico, a “cultura” está em tudo aquilo que o homem faz e se objetiva em discursos, produtos, práticas, ritos e instituições transmitidos socialmente, então basta nascer para fazer parte de uma cultura. Mas, do ponto de vista intelectual, se não interagimos conscientemente com a nossa própria cultura, ela se torna, não uma “segunda natureza”, mas uma natureza morta. Seus produtos deixam de nos convocar ao diálogo com o passado e passam a nos oprimir com o peso de um destino tão arbitrário quanto inalterável. Se é possível ver a cultura como meio simbólico para a afirmação de uma identidade coletiva, podemos também compreendê-la como cultivo diferenciado das capacidades humanas, em busca de superação. Enquanto o acesso à cultura, no primeiro sentido, é praticamente automático, neste outro sentido representa uma opção, que exige decisão, disciplina e dedicação.
Ao mesmo tempo, enquanto a primeira acepção de “cultura” assegura a inclusão num grupo e confere ao sujeito uma determinada identidade social, a segunda acepção remete às possibilidades de desenvolvimento pessoal, sem o qual qualquer identidade será sempre estereotipada e artificial. No primeiro sentido, a cultura legada pelo grupo de origem é a expressão simbólica do acolhimento familiar, o lugar da comodidade espiritual, a garantia do reconhecimento pelo outro. No segundo, ela representa o risco do estranhamento e também a possibilidade de transcendência. Mas o mais surpreendente e interessante é que estes dois sentidos da palavra “cultura” convivem e se complementam como dois registros distintos da mesma aventura humana. A mentira da cultura (ou a cultura da mentira) começa quando nos sentimos obrigados (e obrigamos nossos alunos) a “optar” por uma daquelas formas de compreensão da própria cultura, passando a demonizar a outra…
14/08/2009
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